Ler “O Almirante Louco” nos coloca em contato com várias pessoas dentro de uma única pessoa, e pessoa seria o Fernando, o poeta português Fernando Pessoa. De posse de seus heterônimos, Pessoa passeia aqui e ali, nos carrega por caminhos que valem a pena ser percorridos.
Não sabe o que são heterônios? Ao contrário de pseudônimos, os heterônimos constituem uma personalidade. Sendo assim, o autor assume outras personalidades como se fossem pessoas reais. A coletânea mostra um pouco de cada uma das 4 pessoas que habitaram Fernando.
A sinopse oficial informa:
Um solitário apaixonado, um pastor filósofo, um engenheiro naval, um médico tranquilo – diferentes personalidades experimentando o mundo, cada qual a seu modo. Temperamentos que nascem da imaginação de um único homem, Fernando Pessoa, poeta de muitas faces. Fingidor sincero, seus poemas nos mostram como é difícil dizer com precisão onde termina a realidade, onde começa o sonho.
Para esse livro, o poeta Carlos Felipe Moisés escolheu poemas curtos de Pessoa e de seus heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, este chamado “almirante louco”.
O livro ainda conta com ilustrações de Odilon Moraes, apresentando um belo projeto gráfico, tendo Odilon criado imagens para cada um dos pseudo-personagens de Fernando Pessoa. A obra portanto, é bonita de se ver e de se ler.
Bem curtinho, com apenas 64 páginas, o livro funciona quase como um aperitivo, bem temperado, pronto para ser degustado e com ingredientes sabiamente selecionados, por Carlos Felipe Moisés, que escreve seus comentários com uma linguagem concisa e fácil de entender. Por ter uma pegada mais ‘jovem’ (afinal o livro é destinado para este público), consegue ter uma fluidez e leveza sem igual.
Divididos em blocos, Moisés apresenta características de Fernando Pessoa e seus pseudo-personagens: Alberto Caeiro (poeta da natureza), Álvaro de Campos (o almirante louco) e Ricardo Reis (um poeta calmo e ignorado).
Na obra consta ainda uma das mais interessantes declarações sobre Fernando Pessoa, escrita por Carlos Felipe Moisés:
Era uma vez um almirante louco, depois um pastor simples e ingênuo, depois um sujeito solitário, que ficava sempre olhando os outros, à distância, e também um homem que queria muito ser calmo e ignorado…e todos que escreviam poesia. Quer dizer, era uma vez um poeta, e outro e outro mais… Era uma vez muitos poetas que, afinal, eram um só: Fernando Pessoa.
A seguir, destaco alguns poemas que me chamaram a atenção:
Ah um Soneto!!!
Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear…No movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.Mas – esta é boa! – era do coração
que eu falava… e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?…
Levava eu um jarrinho
Levava eu um jarrinho
P’ra ir buscar vinho
Levava um tostão
P’ra comprar pão
E levava uma fita
Para ficar bonitaCorreu atrás de mim um rapaz
Foi o jarro p’ra o chão
Pedi o tostão
Rasgou-se-me a fita
Vejam que desdita!Se eu não levasse um jarrinho
Nem fosse buscar o vinho
Nem trouxesse a fita
P’ra ir bonita
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia
Nada disso acontecia.
Quadras ao Gosto Popular
As gaivotas, tantas, tantas,
Voam no rio pro mar…
Também sem querer encantas,
Nem é preciso voar.***
Tenho um livrinho onde escrevo
Quando me esqueço de ti.
É um livro de capa negra
Onde inda nada escrevi.***
Nuvem alta, nuvem alta,
Porque é que tão alta vais?
Se tens o amor que me falta,
Desce um pouco, desce mais!***
Ai, os pratos de arroz doce
Com as linhas de canela!
Ai a mão branca que os trouxe!
Ai essa mão ser a dela!
Pierrô bêbado
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Só a lua cheia
Branqueia e clareia
As ruas da feira
Na noite entreaberta.Só a lua alva
Branqueia e clareia
A paisagem calva
De abandono e alva
Alegria alheia.Bêbeda branqueia
Como pela areia
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Na noite já cheia
De sombra entreaberta.A lua branqueia
Nas ruas da feira
Deserta e incerta…
Ela canta, pobre ceifeira,
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões para cantar que a vida.Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente está pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciênciaPesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Fernando (António Nogueira) Pessoa nasceu em 1888, em Lisboa. Em 1912, publicou seu primeiro artigo, “A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada”, na revista A Águia. Em 1914, escreveu os primeiros poemas dos heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, aos quais daria personalidades complexas. Sob o nome de Bernardo Soares, Fernando Pessoa escreveu os fragmentos mais tarde reunidos em O livro do desassossego. No ano seguinte, com escritores como Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro, lançou a revista de poesia de vanguarda Orpheu, marco do modernismo em Portugal e que daria grande projeção ao poeta. O único livro de poesia em português que publicou em vida foi Mensagem (1934), marcado pela visão mística e simbólica da história lusa. Fernando Pessoa morreu em 1935, em Lisboa.