A insegurança é a marca fundamental dos tempos líquido-modernos. Terrorismo, crime organizado, desemprego e solidão: todos esses são fenômenos típicos de uma era na qual a exclusão e a desintegração da solidariedade expõem o homem aos seus temores mais graves. Segundo Bauman, o desmonte dos mecanismos de proteção aos menos favorecidos, somado aos efeitos incontroláveis gerados pela globalização, propiciou um ambiente inseguro por definição. Assim, as metrópoles se tornam o local por excelência das ansiedades. “Construídas para fornecer proteção a todos os seus habitantes, as cidades hoje em dia se associam com mais frequência ao perigo que à segurança”, afirma Bauman. Não à toa, para ele, é no medo que se baseia a legitimidade da política contemporânea, incapaz de alcançar a origem global dos problemas – o que acaba por alimentar, ainda mais, as angústias da vida na modernidade líquida.
Esta nova edição de 2021 de “Tempos Líquidos”, publicado pela Zahar, tem a tradução de Carlos Alberto Medeiros. Lançada originalmente em 2007, sob o título original “Liquid Times (Living in an Age of Uncertainty)”, Zygmunt Bauman faz uma reflexão profunda sobre a insegurança, sobretudo nas grandes cidades.
A obra é bastante pontual e com um alto teor reflexivo. Seguindo a mesma fórmula e estilos já utilizados pelo autor, Bauman consegue ser naturalmente bastante claro e compreensível, permitindo ao leitor acompanhar o seu raciocínio para se chegar à conclusão de ser a insegurança a marca dos nossos tempos líquidos. Alenca-se ainda o fato de que os grandes fenômenos dessa era seriam o desemprego, a criminalidade organizada, a solidão, o terrorismo e o medo sempre presente e insuflado por aqueles que vendem a ideia de segurança pessoal.
Alguns trechos que merecem destaque:
A justiça, essa condição preliminar de paz duradoura, também não pode ser obtida assim, muito menos assegurada. A perversa “abertura” das sociedades imposta pela globalização negativa é por si só a causa principal da injustiça e, desse modo, indiretamente, do conflito e da violência. Como diz Arundhati Roy: “Enquanto a elite, em algum lugar do topo do mundo, busca viagens a destinos imaginados, os pobres são apanhados numa espiral de crime e caos.”. As ações do governo dos Estados Unidos, diz ele, juntamente com seus vários satélites mal disfarçados de “instituições internacionais”, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, geraram, como “produtos colaterais” perigosos, “o nacionalismo, o fanatismo religioso, o fascismo e, evidentemente, o terrorismo — que avança de mãos dadas com o progresso da globalização liberal”. “Mercados sem fronteiras” é uma receita para a injustiça e para a nova desordem mundial em que a conhecida fórmula de Clausewitz foi revertida, de modo que é a vez de a política ser uma continuação da guerra por outros meios. A desregulamentação, que resulta na anarquia planetária, e a violência armada se alimentam mutuamente, assim como se reforçam e se revigoram mutuamente. Como diz outra advertência da sabedoria antiga, interarma silent leges (quando as armas falam, as leis silenciam).
Antes de enviar tropas para o Iraque, Donald Rumsfeld declarou: a guerra “será ganha quando os norte-americanos voltarem a se sentir seguros”.4 Essa mensagem tem sido repetida desde então — dia após dia — por George W. Bush. Mas o envio de tropas ao Iraque elevou e continua elevando o medo da insegurança, nos Estados Unidos e em outros lugares, a um novo patamar. Como seria de esperar, o sentimento de segurança não foi a única baixa colateral da guerra. As liberdades individuais e a democracia logo compartilharam a mesma sorte. Para citar a profética advertência de Alexander Hamilton: A violenta destruição da vida e da propriedade inerente à guerra, o esforço e o alarme contínuos resultantes de um estado de perigo constante, vão compelir as nações mais vinculadas à liberdade a recorrerem, para seu repouso e segurança, a instituições cuja tendência é destruir seus direitos civis e políticos. Para serem mais seguras, elas acabam se dispondo a correr o risco de serem menos livres. Agora essa profecia está se tornando realidade.
Incapazes de reduzir o ritmo estonteante da mudança, muito menos prever ou controlar sua direção, nos concentramos nas coisas que podemos, acreditamos poder ou somos assegurados de que podemos influenciar: tentamos calcular e reduzir o risco de que nós, pessoalmente, ou aqueles que nos são mais próximos e queridos no momento, possamos nos tornar vítimas dos incontáveis perigos que o mundo opaco e seu futuro incerto supostamente têm guardado para nós. Nossa atenção é chamada para observar “os sete sinais do câncer” ou “os cinco sintomas da depressão”, ou para exorcizar o espectro da pressão alta, do nível alto de colesterol, do estresse ou da obesidade. Em outras palavras, buscamos alvos substitutos sobre os quais possamos descarregar o medo existencial excedente que foi barrado de seus escoadouros naturais, e encontramos esses alvos paliativos ao tomarmos cuidadosas precauções contra a inalação da fumaça do cigarro de outra pessoa, a ingestão de comida gordurosa ou de “más” bactérias (ao mesmo tempo em que sorvemos os líquidos que prometem conter as “boas”), a exposição ao sol ou o sexo desprotegido. Aqueles que podem dar-se ao luxo de se fortalecerem contra todos os perigos, visíveis ou invisíveis, atuais ou previstos, familiares ou ainda desconhecidos, difusos, porém ubíquos, protegendo -se por trás de muros, equipando os acessos a moradias com câmeras de TV, contratando seguranças armados, dirigindo carros blindados (como os notórios veículos utilitários esportivos), , usando trajes à prova de balas ou aprendendo artes marciais. “O problema”, para citar mais uma vez David L. Altheide, “é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir um senso de desordem que nossas ações precipitam.” Cada fechadura extra na porta da frente, em reação aos sucessivos rumores sobre criminosos de aparência estrangeira cobertos por mantos cheios de adagas, e cada revisão da dieta, em resposta aos sucessivos “pânicos alimentares”, fazem o mundo parecer mais traiçoeiro e assustador, e estimulam mais ações defensivas — que vão, infelizmente, acrescentar vigor à capacidade do medo de se autopropagar.
Tal como o dinheiro vivo pronto para qualquer tipo de investimento, o capital do medo pode ser usado para se obter qualquer espécie de lucro, comercial ou político. E é. Isso acontece também com a segurança pessoal que se tornou um grande, talvez o maior, ponto de venda em toda espécie de estratégia de marketing. O lema “lei e ordem”, cada vez mais reduzido à promessa de segurança pessoal (mais exatamente corporal), se tornou uma grande, talvez a maior, bandeira nos manifestos políticos e nas campanhas eleitorais, enquanto a exibição de ameaças à segurança pessoal se tornou um grande, talvez o maior, trunfo na guerra de audiência dos meios de comunicação de massa, reabastecendo constantemente o capital do medo e ampliando ainda mais o sucesso tanto de seu marketing quanto de seu uso político. Como diz Ray Surette, o mundo visto pela TV parece ser constituído de “cidadãos-cordeiros” protegidos de “criminosos-lobos” por uma “polícia de cães pastores”.
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, iniciou a sua carreiro na Universidade de Varsóvia, onde ocupou a cátedra de sociologia geral. Teve artigos e livros censurados e em 1908 foi afastado da Universidade. Logo em seguida emigrou da Polônia, reconstruindo o sua vida no Canadá, Estados Unidos e Austrália, até chegar à Grã-Bretanha, onde em 1971 se tornou professor titular de sociologia da Universidade de Leeds, cargo que ocupou por 20 anos. Responsável por uma prodigioso produção intelectual, recebeu os prêmios Amalfi (em 1989, pelo livro Modernidade e Holocausto) e Adorno (em 1998, pelo conjunto de sua obra). Foi professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia. O autor conta tem mais de trinta obras publicadas no Brasil, dentre elas: Amor líquido; Comunidade; Globalização: as consequências humanos; Identidade; O mal-estar da pós-modernidade; Modernidade líquida e Vida liquida. Zygmunt Bauman faleceu em 09 de janeiro de 2017 em Leeds, Reino Unido.