Certos fãs, apreciadores e leitores esporádicos dos poemas Drummond certamente tendem a ficar de boca aberta ao ler “O Amor Natural”, um livro de de Carlos Drummond de Andrade, publicado postumamente, em 1992. Mas alguém pode perguntar: Porque ficar de boca aberta? Existirá algo de proibido ou obsceno nas páginas de tal obra que fariam os curiosos se surpreenderem? A resposta é simples e direta: sim. Trata-se de uma obra de poesia erótica.
Muitos dos poemas foram compostos antes mesmo da década de 1970, e já frequentaram algumas revistas eróticas. Ainda em vida, Drummond evitou publicá-los em livro, antes da revolução sexual e de costumes, por receio de serem confundidos com pornografia.
Affonso Romano de Sant’Anna, responsável pelo prefácio do livro, afirma que
…os poemas de O Amor Natural questionam os limites entre a pornografia e o erotismo. O poeta, que em toda a sua obra havia falado do amor apenas como sentimento, de forma abstrata, nesta obra fala explicitamente de relações sexuais.
A apresentação da obra destaca que
Publicado em 1992, cinco anos depois da morte de Carlos Drummond de Andrade, O amor natural foi saudado, com justiça, como um grande acontecimento cultural: a lírica erótica (e por vezes pornográfica) de um dos maiores poetas da literatura brasileira finalmente vindo a lume. Mais de vinte anos depois de sua publicação original, pode-se dizer que a leitura do livro ganha ainda mais importância: os poemas eróticos de Drummond, que na edição original foram lidos quase como uma excentricidade dentro de uma vasta e importante obra, estão entre os maiores exemplos dessa modalidade de lirismo em qualquer idioma. Mais do que isso, grande parte deles está à altura dos maiores momentos do poeta mineiro. Fortes, intensos e sem o travo de melancolia da poesia amorosa de Drummond, os poemas de O amor natural chegam a ser solares em sua clara e positiva afirmação do desejo sexual, do conhecimento físico entre duas pessoas e da vitória contra a morte que representa a busca pelo prazer. Compostos no decurso da longa carreira literária do autor, os textos reafirmam a enorme vitalidade – pessoal e literária – do autor.
Composto de quarenta poemas que representam o prazer sexual relacionado ao sentimento amoroso, mostrando o amor enquanto natureza e ainda, que o amor é também sexo. A sensualidade é colocada como conhecimento de nós mesmos, sendo os momentos de desejo e excitação parte constituintes de nós.
Mas sim, “O Amor Natural” é sem dúvida o livro mais ousado do poeta Carlos Drummond de Andrade.
A seguir, dois dos poemas que compõem a obra.
AMOR — POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL
Amor — pois que é palavra essencial —
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia
reúna alma e desejo, membro e vulva.Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando.E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.
O CHÃO É CAMA
O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.
E, para repousar do amor, vamos à cama.
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira/MG, em 1902. Estreou em 1930, com Alguma poesia, e nos cinquenta anos seguintes publicou obras como Sentimento do mundo, A rosa do povo, Claro enigma e outros. Morreu no Rio de Janeiro em 1987, aos 84 anos.