“Memórias Inventadas: A Segunda Infância” é o segundo livro em prosa de Manoel de Barros, lançado em 2006 e assim como o primeiro, é composto de pequenos textos poéticos. É a segunda parte de um compêndio composto por três livros. Em seus textos fica evidente a inclinação de Manoel de Barros para a poesia e a escrita. Assim, Manoel de Barros inicia esta publicação autobiográfica em 2003, com o livro Memórias Inventadas: A Infância, seguindo da publicação dos outros dois livros: Memórias Inventadas: a Segunda Infância (2006) e Memórias Inventadas: a Terceira Infância (2008).
Assim como na primeira obra desta trilogia, o livro já começa com o autor fazendo uma apresentação de si próprio com o texto “Manoel por Manoel”: “Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.”
Já em Aprendimentos, Manoel de Barros fala sobre suas experiências enquanto estudava: “O filósofo Kiekkegaard me ensinou que cultura é o caminho que o homem percorre para se conhecer. Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim falou que só sabia que não sabia nada. Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes. Disse que fosse ele um caracol vejetado sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente aprender o idioma que as rãs falam com as águas e ia conversar com as rãs. E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver, no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar. Chegou por vezes de alcançar o sotaque das suas origens. Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite! Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles – esse pessoal. Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova. Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis lingüísticos que achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam que o fascínio poético vem das raízes da fala.Sócrates falava que as expressões mais eróticas são donzelas. E que a Beleza se explica melhor por não haver razão nenhuma nela. O que de mais eu sei sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.”
Manoel Wenceslau Leite de Barros (1916-2014) nasceu em Cuiabá/MT e foi um dos poetas brasileiros mais aclamados da contemporaneidade nos meios literários. Manoel de Barros foi um grande autor de versos nos quais elementos regionais se conjugavam a considerações existenciais e uma espécie de surrealismo pantaneiro. Ele era considerado um poeta espontâneo, um tanto quanto primitivo e que extraía seus versos da realidade imediata a sua volta, principalmente da natureza.